VÍTIMAS DO ZIKA
Maria Carolina Flor é mãe de João Gabriel e Maria Gabriela. A segunda gestação, de Gabi, não estava nos planos. A gravidez aconteceu entre o pedido do contraceptivo intrauterino e os exames prévios, que nunca aconteceram. Sem o dispositivo, Maria Carolina engravidou e aos três meses teve dores de cabeça, febre, dores atrás dos olhos, manchas vermelhas na pele – sintomas da zika. Ela foi ao posto de saúde diversas vezes, mas diz que ninguém lhe deu atenção. Maria Gabriela nasceu sem que a família soubesse da sua condição de saúde. Assim como 120 mães e crianças paraibanas, Gabi foi atingida pela síndrome congênita do zika vírus. “Como só fiquei sabendo na hora, estava eu sozinha na sala, sem ninguém para me ajudar. Era como se tivesse nascido um animal.”
Natural de Esperança, município da zona rural da Paraíba, Maria Carolina esteve no Rio de Janeiro, de 27 a 29 de janeiro, participando de um evento sobre ciberativistas negras. Ela compartilhou sua experiência com a criação do blog Somos Todos Maria Gabriela, http://somostodosmariagabriela.blogspot.com.br, que traz inquietações sobre o zika vírus e denúncias sobre as negligências sofridas durante a gestação, no parto e no pós-parto.
Ela conta que o processo que a família move contra o município e o estado está parado. “Estamos na luta na justiça contra o próprio poder público, que é negligente e ruim.” Uma vez por semana, Maria Carolina e outras mães paraibanas se reúnem para falar sobre dificuldades e unir forças para buscar seus direitos. “Vimos a necessidade de criar uma associação no momento em que procuramos assistência do nosso municipio e não conseguimos”, explica Maria Carolina.
Perguntada sobre suas prioridades para o futuro, Maria Carolina é categórica: “fazer com que todo mundo entenda que somos gente. Nós temos também direitos”.
Criola – Uma de suas lutas é com relação às informações que você recebeu durante o pré-natal. Como foi o seu pré-natal e quais informações foram essas?
Maria Carolina Flor – Sobre as nossas lutas, na questão do pré-natal, houve negligência total. Durante o pré-natal, só fiz apenas um ultrassom pois o médico disse que não precisava fazer os demais. Mesmo assim, o ultrassom mostrou “achados” no ventrículo lateral. Fiz o segundo, chamado de morfológica, no particular, mas ninguém sabia dizer o que era.
Quando eu estava no segundo mês de gestação fui picada pelo mosquito da zika. Quando fui no postinho, a enfermeira disse que eu voltasse para casa e tomasse Dipirona. A mesma também salientou que ela mesma, enfermeira, já teve zika duas vezes. E questionou por que eu não podia ter também.
Na mídia já começava a se falar que nas mulheres grávidas e que tiveram zika, as crianças estavam nascendo com microcefalia. O médico do meu postinho de saúde e a enfermeira não deram a mínima atenção a mim. Para piorar, só fiquei sabendo quando minha filha nasceu e eu não tinha ninguém para me dar suporte naquela hora dolorida porque também fomos negligenciados quando negaram o direito (lei federal) do pai acompanhar o parto. Também existe uma lei da Anvisa que determina que pai não é visita e muito menos acompanhante. Minha filha nasceu num hospital que não tinha nem UTI e muito menos suporte avançado. Como só fiquei sabendo na hora, estava eu sozinha na sala, sem ninguém para me ajudar. Era como se tivesse nascido um animal.
Criola – Logo, você criou uma frente de mídia e articulação para falar sobre zika. Quais foram suas motivações para ser a produtora de conteúdo? Como foi esse processo?
Maria Carolina Flor – Como forma de desabafar e criar um vínculo maior para que todos possam nos apoiar, tivemos a iniciativa de fazer o blog para divulgação e exposição das nossas inquietações. E também denunciar as negligências que sofremos durante a gestação e parto no parto e no pós-parto.
Criola – Dentro e fora da Internet, você dá visibilidade à causa do combate à zika e a seus efeitos. Para você, a sociedade e o governo continuam mobilizados com relação ao controle da epidemia?
Maria Carolina Flor – Entendemos que a epidemia do zika vírus vai muito além de uma doença ou de alguma síndrome ela faz parte da desigualdade social e econômica de nosso país especialmente da diferença entre regiões – do sul para região nordeste. Somos totalmente esquecidos e esquecidas pelos nossos governantes. O que ocorre, na verdade, é a desigualdade desenfreada referente ao saneamento básico, à saúde básica, à falta de conscientização e de informatização eficaz dentro bairros.
Até hoje, estamos vivendo a maior negligência já vista em todas as décadas. Ainda não existe um centro de referência que comporte todas as crianças com microcefalia congênita do Zika vírus aqui na Paraíba. Atualmente, querem transferir 120 mães para a AACD, que está sucateada e superlotada.
Criola – Como é sua rotina?
Maria Carolina Flor – Minha rotina diária é cuidar da casa, de Gabi, bem como também de João Gabriel. Também ganhei uma bolsa de estudos e todas as segundas e quartas-feiras, sem falta, me dedico ao curso superior de nutrição na Faculdade Maurício de Nassau, na modalidade EAD. Então, minha vida fica super mega ocupada e, às vezes, também estressante.
Criola – Você acredita que suas necessidades foram/são ouvidas ou levadas em consideração nos hospitais, nos centros de reabilitação ou no judiciário?
Maria Carolina Flor – Somos a primeira família a entrar na justiça e no ministério público na garantia de direitos de Gabi pela falta de estrutura, negligência, falta de informação tudo de acordo com a lei e com a Constituição. Como estamos buscando nossos direitos, especialmente nossa filha, que – como criança e bebê – não vê e não tem conscientização. Falamos por nossos filhos, que são agredidos sem a estrutura e com a falta de informação.
Criola – A ação já foi julgada? Como está o andamento desse processo?
Maria Carolina Flor – Estamos na luta na justiça contra o próprio poder público, que é negligente e ruim. Um cego, que só vê o lado deles, da burguesia. Infelizmente, o nosso processo na justiça, aqui no estado da Paraíba, especialmente onde moramos, Esperança, o processo está parado. Repito. O processo está parado.
Criola – Vocês acionaram outras instituições? Como o Ministério Público, por exemplo?
Maria Carolina Flor – Fomos até o Ministério Público e ele não faz nada até agora. Sabe o por quê? Porque estamos lutando por direitos nossos, reivindicando reparação de dano moral do estado e do município.
Por isso, e muito mais, que estamos até em Brasília, através do Instituto de Bioética, bem como também da Defensoria Pública, dos advogados Defensores Públicos de Brasília para que eles possam ecoar nossa voz.
A voz de que estamos esquecidos e que não somos gente, pois, para eles, não pensamos. Eles acham que somos pobres miseráveis e que R$ 880,00 é riqueza suficiente para manter quatro pessoas, pagar água, luz, aluguel, transporte, medicamento, tudo o que eles, ricos, que recebem de R$ 15.000,00 a R$ 30.000,00, têm – do bom e do melhor.
Criola – Você acha que as instituições estão preparadas para lidar com as necessidades (médicas, psicológicas, financeiras, materiais) das mulheres afetadas pela Zika?
Maria Carolina Flor – Sobre as instituições, elas não estão preparadas para atender as mulheres. No sistema de saúde, as enfermeiras, por exemplo, têm preconceito contra as mulheres que se relacionam com pessoas do mesmo sexo. Sem contar que a maioria das famílias afetadas foram de pessoas negras – somos tidos como pobres e miseráveis. Para aquelas que são brancas, existe uma diferenciação no atendimento. Isso é visível.
Criola – Quais são suas necessidades para agora?
Maria Carolina Flor – Minhas necessidades de hoje são as necessidades de Gabi, as necessidades em casa e a necessidade de conseguir um trabalho para conseguir manter a família. Eu e meu esposo não podemos ter vínculo, com carteira assinada, ou seja, estamos dependentes do benefício único de Gabi que é de R$ 880,00. Uma condição de miserabilidade que nós, famílias afetadas da negligência do Zika vírus, no Brasil especialmente aqui no Nordeste, passamos. Como dito, estamos desempregados por força maior do governo federal que determina, por meio do INSS, que não podemos trabalhar.
Criola – Esse benefício é o BPC (Benefício de Progressão Continuada), certo?
Maria Carolina Flor – A lei que obriga é o BPC. Ele é que dá essa condição de miserabilidade para famílias que tem criança portadora, que é especial. Mas o que é isso? Digo e repito: é um absurdo. Somos vítimas de uma epidemia dita, pelo ministro, como que saiu fora do normal e eles não tiveram controle.
Não podemos fazer o uso do pré-julgamento ou de usar a baixaestima para dizer que somos vítimas o tempo todo. Mas somos realmente agredidos e esbofeteados constantemente pela falta estrutura para o tratamento de Gabi, que é portadora da síndrome congênita do zika vírus, mas não só para ela, como para 120 mães e crianças aqui da Paraíba.
Criola – Foi a partir das dificuldades de acesso a direitos que vocês perceberam a necessidade de organizar uma associação?
Maria Carolina – Quando as mães começaram a relatar as dificuldades que estavam tendo com transportes, exames e até com o benefício das crianças, o BPC. Sempre às quartas-feiras, nós, mães, nos reunimos junto com a psicóloga para discutir sobre o que mudou desde o diagnóstico de microcefalia até o nascimento e o primeiro ano de vida de cada bebê. Nesse momento, as mães se sentem mais seguras para falar de duas dificuldades e obstáculos percorridos durante um ano. Estamos na fase de associar as mães para podermos unir forças e ir à luta pelos nossos direitos. A associação é a porta principal. Eu digo, pois, a união faz a força e juntas somos mais fortes e seremos mais ouvidas.
Criola – O que você considera como prioridade quando planeja o seu futuro e o futuro dos seus filhos?
Maria Carolina Flor – Fazer com que todo mundo entenda que somos gente. Nós temos também direito. Nossos governantes acham que somos miseráveis, pobres, de baixa renda, que vivemos em córregos, e bebemos água suja de esgoto.
Por: Viviane Gomes